O dogma de nossos dias
O jornal Gazeta do Povo publicou um novo artigo produzido por mim. No texto, ofereço uma questão relevante: que intercessões há entre cultura e verdade. Espero que goste! Deixe lá no site da Gazeta do Povo seu comentário.
O dogma de nossos dias
Alguma cultura tem o direito de colocar-se acima da verdade?
O mandamento da hora presente é a relativização cultural. Qualquer assunto recebe, no nascedouro, o selo da indeterminação e da temporalidade. Aos olhos contemporâneos, disse Joseph Ratzinger a respeito desse espírito difuso, quem se lhe opõe qualquer senão opõe-se simultaneamente à democracia e à tolerância. O dogma incontestável desses dias é que a cultura e a verdade não habitam sem litígio o mesmo período gramatical. Quando o assunto é família ou política, virtudes ou cinema, tecnologia ou religião não se aceitam elementos objetivos que ultrapassem as próprias perspectivas individuais. Nenhum conteúdo pretensamente verídico pode questionar as diversas tradições culturais, mesmo que eventualmente antagônicas. Contudo, o próprio filosófico é averiguar o princípio (arché) que repousa escondido sob cada cultura, atrás de todo arcabouço epistêmico, antes de quaisquer exteriorizações históricas. O que esse espírito contemporâneo pretende é impedir que se procure até que se encontre o ponto de interseção entre esses diversos discursos, o aspecto em que as abordagens aparentemente distantes se tocam, tornando a reflexão humana coerente, unitária e consistente. Pretende-se impedir justamente o oposto do dogma da moda.
Para além da necessidade de comunicação, muito além das convenções humanas que podem criar um ponto de contato útil, mas fictício entre as culturas, o que garante a existência desse lugar de encontro entre as diversas tradições culturais – e dá alguma esperança à reflexão filosófica – é a própria realidade. Por mais que sejam diferentes, os diversos âmbitos da vida humana são sempre discursos sobre o real: o real no âmbito político, o real no nível familiar, o real sob a égide tecnológica. Ora, quando o homem cria um discurso para descrever as exigências desta realidade, e quando este discurso o faz com correção, o que acontece é um relato verdadeiro sobre o mundo. É como ocorre numa reflexão sócio-política: ao analisar o mundo, é possível deparar-se com ações violentas, como a injustiça contra o mais fraco. Apesar desse fato representar o mundo tal como ele é, repleto desses atos injustos, o homem não se rebela pois a injustiça não aperfeiçoa o homem e ele não cresce interiormente. No fundo, o homem sabe que esse mundo, com essas ações más e injustas, não é como devia ser. Pode-se criar, então, um discurso que valorize a justiça e que, indo contra o estado de coisas, procure melhorar as relações sociais. O que se pode nomear “cultura” é, propriamente, a ação humana em que se representa a realidade como devia ser: mais poética, mais harmônica, mais bela, mais conforme à natureza humana. Nesse sentido se oferece a questão maximamente importante e que coloca em xeque o dogma de nossos dias: alguma cultura tem o direito de colocar-se acima da verdade? Em nome de um discurso local e do status quo, é tolerável vilipendiar o dever-ser do mundo?
A compreensão acerca da noção de cultura está prejudicada em razão do pensamento contemporâneo. Segundo Hans-Georg Gadamer, a compreensão acerca da noção de cultura está prejudicada em razão do pensamento contemporâneo. Em um momento histórico em que a verdade perde força agregadora, apesar dos discursos éticos jurídico-positivos pretenderem justificar alguma moralidade, Gadamer afirma: a noção de cultura não é capaz de emprestar unidade, como no passado, às ações humanas. De certo modo, a crise da verdade acarreta a desconfiança no poder coagulador da ciência, colapsando a cultura. Assim, a cultura enfraquece seu poder unificador, pois seu fundamento é sua relação com a verdade. Por causa da crise da verdade, Gadamer sustenta que “o conceito de cultura paira numa indeterminação característica” (Gadamer, Hans-Georg. Elogio da Teoria. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 9), indeterminação derivada do distanciamento da verdade.
Todavia, justamente porque a crise é profunda, não é incomum encontrar defensores da indeterminação. Alguns sustentam a absolutização da cultura brasileira frente a todos os estrangeirismos: dos americanos, dos chineses e, claro, da Igreja Católica. Eles dizem que a Igreja é europeia e que impõe limites ao modo brasileiro de viver…
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