Matrimônio: O amor humano sob a perspectiva divina – por Jefferson Belarmino
Para um cristão, a vida espiritual é parte fundamental do seu ser. É imprescindível que todo batizado se esforce continuamente por crescer na vida de intimidade com seu Senhor. Senhor esse que já não nos chama servos, mas amigos [1]. O caminho para que tal intimidade comece a ser moldada no coração não é fácil, muito menos rápido; trata-se uma verdadeira batalha espiritual para a qual não basta uma única vitória, visto que inicia-se novamente a cada despertar. Com razão exclama o apóstolo, parafraseando o Salmo 44, 23:
“Por sua causa somos postos à morte o dia todo, somos considerados como ovelhas destinadas ao matadouro. Mas em tudo isto somos mais que vencedores, graças àquele que nos amou” [2].
A Santa Igreja nos oferece todos os meios necessários para atinjamos à perfeição a qual somos chamados. Grande papel desempenham as práticas litúrgicas e devocionais, dentre as quais destaca-se a meditação e escuta da Palavra de Deus, denominada ao longo da tradição como “lectio divina”.
O objetivo da presente exposição está longe de ser um tratado de teologia ou espiritualidade. Contentamo-nos, aqui, com a simples pretensão de expor em poucas linhas uma modesta reflexão sobre nossa vocação; sobre o chamado que o Senhor não somente realiza, mas que planeja desde toda a eternidade. É muito provável que o leitor já esteja imaginando que nos dirigimos àqueles que vivem o estado de vida consagrada, tais como sacerdotes ou religiosos. Não. Nos dirigimos a você que foi chamado à vocação matrimonial; a você que divide as alegrias e dificuldades da vida ao lado de seu cônjuge; a você que jurou amor e fidelidade por toda a vida.
É a partir da palavra de Deus que nortearemos toda esta reflexão. E, através de nosso testemunho, confirmamos o que mais uma vez diz o apóstolo:
“Pois a Palavra de Deus é viva, eficaz e mais penetrante do que qualquer espada de dois gumes; penetra até dividir alma e espírito, junturas e medulas. Ela julga as disposições e as intenções do coração. E não há criatura oculta à sua presença. Tudo está nu e descoberto aos olhos daquele a quem devemos prestar contas” [3].
As leituras tomadas são as da Solenidade da Natividade de São João Batista, celebrada a 24 de Junho: Is 49, 1-6 e Sl 138. A estas acrescentaremos outras que farão o papel de guia do nosso pensamento. Esperamos que seja de bom proveito para o leitor.
No livro do profeta Isaías, estão presentes os chamados “Quatro Cânticos do Servo” (Is 42; 49; 50; 52). Nossa leitura é o chamado “Segundo Cântico do Servo”:
“Desde o seio materno o Senhor me chamou,
desde o ventre de minha mãe pronunciou o meu nome.
De minha boca fez uma espada cortante,
abrigou-me à sombra de sua mão;
fez de mim seta afiada,
escondeu-me na sua aljava.
Disse-me: “Tu és meu servo, Israel,
em quem me glorificarei”.
[…] disse o Senhor,
Aquele que me modelou desde o ventre materno para ser seu servo […]” [4].
Aqui, o profeta, como prefiguração da Nova Aliança, fala de sua predestinação. O mesmo ocorre com Jeremias:
“A palavra do Senhor me foi dirigida nos seguintes termos:
‘Antes mesmo de te modelar no ventre materno, eu te conheci;
antes que saísse do seio, eu te consagrei’” [5].
Até mesmo o salmista eleva a Deus um belíssimo canto bendizendo-o por sua providência:
“Pois Tu formaste os meus rins,
Tu me teceste no seio materno.
Eu te celebro por tanto prodígio,
e me maravilho com as tuas maravilhas!
Conhecias até o fundo do meu ser:
meus ossos não te foram escondidos
quando eu era modelado, em segredo,
tecido na terra mais profunda.
Teus olhos viram o meu embrião.
No teu livro estão todos inscritos
os dias que foram fixados
e cada um deles nele figura.
Mas, a mim, que difíceis são teus projetos,
Deus meu, como sua soma é grande!
Se os conto, são mais numerosos que a areia!
E, se termino, ainda estou contigo! [6]”.
Mas, afinal de contas, por que estamos colocando em questão essas passagens? Para trazer à consciência de quem quer que leia estas linhas que o Senhor possui um plano de vida para cada um de nós, sonhado desde toda a eternidade. É para este plano que fomos criados e trazidos à vida. Nossa maior frustração será não cumpri-lo. Não se trata aqui apenas de uma frustração sob o ponto de vista divino, ou seja, uma “decepção” de Deus para conosco. Trata-se aqui da nossa própria realização individual, da nossa própria felicidade! Isso é vocação! Se há alguma dificuldade quanto a isso não é porque se constitui como uma decisão arbitrária de Deus que nos destina a um caminho que sequer desejamos seguir, mas porque ainda não nos convencemos desta verdade: a plena felicidade é aquela que nos foi destinada desde nossa concepção.
“Guiai meus passos nos caminhos que traçastes,
Pois só nele encontrarei felicidade” [7].
Acredito que, a partir deste momento, torna-se mais clara a dimensão vocacional que pretendemos seguir. Porém, como tudo isso se relaciona com a vocação matrimonial? É o que abordaremos a partir de agora.
Nos ambientes católicos, felizmente, muito se tem propagado a respeito do chamado à santidade. O próprio Papa Francisco promulgou recentemente a exortação apostólica “Gaudete et Exsultate” (Alegrai-vos e Exultai) sobre “a chamada à santidade no mundo atual” [8]. Entretanto, quanto nos referimos ao tema “vocação”, é comum que nos venha à mente a vida sacerdotal ou religiosa. Isso se dá pelo fato de que ainda não estamos convencidos que a vida conjugal também é um chamado de Deus; ainda a consideramos como uma “não-vocação”. Assim, os que são chamados por Deus à perfeição devem entrar nos conventos e seminários enquanto que nós, “simples mortais”, devemos nos contentar como uma vida medíocre ao lado de nossas esposas e maridos.
Não! Já é hora de extirparmos esse pensamento de nosso meio. É hora de abrirmos os olhos e enxergarmos naquele(a) a quem amamos a própria face de Deus. Façamos, pois, a maravilhosa descoberta de que esta pessoa nos foi destinada por Deus desde toda a eternidade e que a nós compete salvá-la!
Um sacerdote, ao ler as passagens acima enumeradas, tem suas entranhas comovidas de amor simplesmente pelo fato de imaginar que Deus o separou desde sempre para seu santo serviço. Pois bem: por que é que nós, ao lermos as mesmas passagens, não temos também nossos corações invadidos de amor e santo temor ao entendermos que nossa vocação é amar e se dar inteiramente àquela pessoa a quem tanto amamos?
Nos textos bíblicos, encontram-se algumas lindas histórias que podem nos ajudar nessa compreensão. Dentre elas, nos utilizaremos aqui da vida de Tobias e Sara. Transliteraremos apenas pequenos trechos, visto que a narrativa se estende por diversos capítulos do livro de Tobias [9].
Sara já havia sido dada sete vezes em casamento, contudo, algo de ruim sempre acontecia:
“Naquele mesmo dia, aconteceu que Sara, filha de Raquel, habitante de Ecbátana, na Média, teve também de ouvir insultos de uma serva de seu pai. Ela fora dada sete vezes em casamento, e Asmodeu, o pior dos demônios, matara seus maridos um após o outro, antes que se tivessem unido a ela como esposos. A serva lhe dizia: ‘És tu que matas teus maridos! Já foste dada a sete homens e não foste feliz sequer uma vez! Queres castigar-nos por terem morrido teus maridos? Vai procurá-los e que nunca se veja de ti filho nem filha!’ Naquele dia, a alma de Sara se encheu de tristeza: ela se pôs a chorar e subiu ao quarto de seu pai com a intenção de se enforcar. Mas, refletindo, pensou: ‘Talvez isto sirva para que injuriem meu pai e lhe digam: ‘Tinhas uma filha única, amada, e ela se enforcou porque se sentia infeliz.’ Não posso consentir que meu pai, em sua velhice, desça acabrunhado à mansão dos mortos. É melhor que, em vez de enforcar-me, suplique ao Senhor que me envie a morte, para não ter de ouvir injúrias durante minha vida’” [10].
Assim termina a oração de Sara:
“[…] Se não te apraz, Senhor, dar-me a morte, olha-me com compaixão! E não tenha eu que ouvir injúrias” [11].
O texto latino da Vulgata (versão em latim elaborada por São Jerônimo) traz o belíssimo acréscimo:
“Se consenti em tomar marido, não foi por paixão, mas no teu temor. Neste caso, ou eu não fui digna deles ou eles não foram dignos de mim. Ou então, será que me terias reservado para outro marido? Teus desígnios não estão ao alcance do homem, mas todo aquele que te serve sabe que, se esteve na provação, será coroado; se esteve na tribulação, será libertado; se passou pela correção, terá acesso à tua misericórdia. Pois não te comprazes em nossa perda, mas depois da tempestade trazes a bonança e, depois das lágrimas e do pranto, infundes a alegria” [12].
Sara tem sua oração ouvida por Deus, que envia o arcanjo Rafael para curar o pai de Tobias, o qual estava sofrendo de cegueira, e para livrá-la do demônio Asmodeu, dando-a como esposa a Tobias, visto que havia um laço consanguíneo.
Não exporemos detalhes, mas apenas nos debruçaremos sobre as partes mais importantes para nossa exposição.
Tobias, ao tomar conhecimento do que acontecia com os esposos de Sara, diz a Rafael:
“Meu irmão, ouvi dizer que ela já foi dada a sete maridos e que todos morreram na noite de núpcias; morriam ao entrar onde ela estava. Também ouvi dizer que era um demônio que os matava, por isso tenho medo. A ela não faz nenhum mal, porque a ama; mata, porém, quem queira aproximar-se dela” [13].
Mas o arcanjo responde:
“Ouve-me, irmão; não tenhas medo desse demônio e toma-a; sei que esta noite eles a darão a ti por mulher. […] Depois, no momento de unir-te a ela, levantai-vos ambos para fazer oração e suplicai ao Senhor do Céu que vos conceda sua graça e sua proteção. E não temas, pois ela te foi destinada desde o princípio, a ti compete salvá-la.
[…] Quando Tobias ouviu as razões de Rafael […] enamorou-se de tal modo que seu coração não podia separar-se dela” [14].
Novamente, o texto latino da Vulgata traz outro espetacular acréscimo:
“Então o anjo lhe disse: ‘Ouve-me; eu te mostrarei quais são aqueles sobre quem o demônio tem poder. São os que se casam com tais disposições, que lançam a Deus fora de si e se entregam à sua paixão, a tal ponto que não têm maior entendimento que o cavalo e o muar (Sl 31,9 e Rm 1, 21-26); a esses o demônio supera. Mas tu, quando a tiveres recebido por esposa, viverás com ela em continência durante três dias e não cuidarás de outra coisa senão de fazer oração com ela. […] Passada a terceira noite, no temor do Senhor, tomarás a donzela, levado menos pelo instinto do que pelo desejo de ter filhos, a fim de obteres sobre teus filhos a bênção de Abraão’” [15].
Através dessa comovente história matrimonial entre Tobias e Sara, vemos o quanto é santificante tal vocação. As palavras do próprio arcanjo o confirmam, dizendo a Tobias que Sara havia sido destinada a ele desde toda a eternidade.
Através de uma leitura alegórica, sem pretensão de a considerarmos como o significado mesmo do texto bíblico, mas apenas espiritual, podemos afirmar que o espírito que atormentava os matrimônios de Sara era o espírito da impureza. Até hoje, muitos casais acreditam que a certidão de casamente se assemelha a um “alvará de estupro”. O pecado contra a castidade através da impureza não ocorre apenas na prática sexual antes do casamento, mas também depois. Então, qual seria a diferença entre a vida sexual de um casal unido em santo matrimônio dos demais? Resposta:
“Usando uma analogia religiosa, a diferença entre o ato sexual feito dentro do casamento e fora deste é semelhante ao caso daquelas pessoas que comem hóstias não consagradas: tais pessoas até podem matar a curiosidade e satisfazer o sabor sensível, mas não terão, na sua alma, a alma do Cristo” [16].
Esse demônio apenas foi expulso por meio da oração conjunta de ambos os esposos:
“Então Tobias levantou-se do leito e disse a Sara: ‘Levanta-te, minha irmã! Oremos e peçamos a nosso Senhor que tenha compaixão de nós e nos salve’. Ela se levantou e começaram a orar e a pedir para obterem a salvação. Ele começou dizendo:
‘Bendito sejas tu, Deus de nossos pais,
e bendito seja teu Nome
por todos os séculos dos séculos!
Bendigam-te os céus
e tua criação inteira
em todos os séculos!
Tu criaste Adão
e para ele criaste Eva, sua mulher,
para ser seu sustentáculo e amparo,
e para que de ambos derivasse a raça humana.
Tu mesmo disseste:
‘Não é bom que o homem fique só;
façamos-lhe uma auxiliar semelhante a ele’.
E agora, não é por desejo impuro
que tomo esta minha irmã,
mas com reta intenção.
Digna-te ter piedade de mim e dela
e conduzir-nos juntos a uma idade avançada!’
E disseram em coro: ‘Amém, amém!’. E se deitaram para passar a noite” [17].
Segundo a tradução latina, há também uma benção por parte do pai de Sara:
“E, pegando na mão direita de sua filha, a pôs na mão direita de Tobias, dizendo:
‘O Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó esteja convosco! Que Ele mesmo vos uma e vos cumule com sua bênção’” [18].
Como se encontra escrito na nota de rodapé da Bíblia de Jerusalém, essa fórmula inspirou a bênção litúrgica dos noivos.
Assim, cremos ter cumprido o humilde objeto desta exposição: trazer uma pequena reflexão acerca da profundidade e santidade da vocação matrimonial. Tenhamos, pois, consciência da grandiosidade do nosso chamado. Estás solteiro(a)? Peça a Deus a sabedoria do discernimento. Estás namorando? Respeite-a(o) e ame-a(o) com o amor do próprio Deus. Estás noivo(a)? Toma consciência do passo que vais dar. És casado(a)?
“Sujeitai-vos uns aos outros no temor de Cristo. As mulheres sejam submissas a seus maridos, como ao Senhor[19] […]. Assim como a Igreja é submissa a Cristo […]. Maridos, amai as vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela, para santifica-la, purificando-a pela água do batismo como a palavra, para apresentá-la a si mesmo toda gloriosa, sem mácula, sem ruga, sem qualquer outro defeito semelhante, mas santa e irrepreensível. Assim, os maridos devem amar suas mulheres, como a seu próprio corpo. Quem ama sua mulher, ama-se a si mesmo.
[…] Este mistério é grande, quero dizer, com referência a Cristo e à Igreja. Em resumo, o que importa é que cada um de vós ame a sua mulher como a si mesmo, e a mulher respeite o seu marido” [20].
[1] Jo 15, 15
[2] Rom 8, 36-37
[3] Heb 4, 12-13
[4] Is 49, 1c-3. 5a
[5] Jr 1, 5
[6] Sl 138, 13-18
[7] Sl 118, 35
[8] Disponível em: https://w2.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20180319_gaudete-et-exsultate.html
[9] Tob 3-10
[10] Tob 3, 7-10
[11] Tob, 3, 15
[12] Vulg.: Tob 3, 18-22
[13] Tob 6, 14-15a
[14] Tob 6, 16. 18b-19a.20b
[15] Vulg.: Tob 6, 16-22
[16] SANTOS, Pe. Wagner Augusto dos. Comentário à Teologia do Corpo de São João Paulo II.Rio de Janeiro: Anvelicum, 2017, 2ª ed.
[17] Tob 8, 4b-9
[18] Vulg.: Tob 8, 15
[19] Este texto é causador de grandes polêmicas. Entretanto, achamos oportuno não elaborar aqui uma exegese a respeito do texto pelo fato de nos distanciarmos do objetivo principal. Tal trabalho poderá ser feito em uma outra exposição. Contudo, deixamos claro aqui que esta passagem não se baseia em nenhuma concepção machista ou algo do tipo. Pelo contrário, se a missão do marido é a de dar a vida pela esposa à semelhança do sacrifício de Cristo pela sua Igreja, a “submissão” da esposa é colocar-se debaixo da missão do marido. Em outras palavras, ao dizer “submetei-vos”, o apóstolo diz “deixai-vos amar”.
[20] Ef 5, 21-22.24-28.32-33
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