Maritain e a Crítica ao Maquiavelismo
O pragmatismo político à luz crítica humanista.
Raílson da Silva Barboza[1]
RESUMO
Este artigo tem por objetivo analisar a crítica ao pragmatismo político, desenvolvido por Maquiavel, à luz crítica do filósofo francês Jacques Maritain. Ao adentrar os principais temas desenvolvidos pelo autor florentino, busca-se entender os contrapontos formulados por Maritain para divergir dos conceitos éticos, políticos e morais contidos em suas obras, levando em consideração suas reflexões bibliográficas e análises. O novo conceito ético proposto por Maquiavel é analisado pela sua finalidade, segundo Maritain, que aponta a residência da principal força do Maquiavelismo, e questiona se esta deriva uma ação moralmente lícita antropologicamente. Por fim, o humanista reflete sobre as consequências desta nova forma de agir, identificando seu alicerce e seus perigos, não só para o homem político, mas para o homem que pauta sua liberdade na justiça e no bem, do ponto de vista metafísico.
Palavras-chaves: Pragmatismo Político. Maritain. Maquiavelismo. Ética. Ação.
1. INTRODUÇÃO
Na visão do filósofo francês, humanista e católico Jacques Maritain (1882 – 1973), que via em Maquiavel e em suas obras ( sobretudo n’O Príncipe ), a “racionalização técnica da vida política” [2], isto é, o êxito na instrumentalização de um sistema racional pelo qual os homens mais frequentemente se comportam de fato, no meio político, submetendo esse comportamento à uma simples forma artística e à regras de arte, transformando o conceito de boa política em sinônimo de política amoral, mas bem sucedida. A arte de conquistar (prudência), de conservar o poder (virtù) por todos os meios (ética laica) – mesmo por bons meios, quando a oportunidade se oferece, o que para Maritain, não é frequente – com a única condição de que sirvam para alcançar êxito[3]. A amoralidade política, desenvolvida à partir deste pensamento de Maquiavel, se desdobra na ética, na inversão de valores, sendo base para muitas crises posteriores e que hoje vemos em nossa sociedade.
Nos livros Humanismo Integral[4] e O Homem e o Estado[5], o filósofo francês critica indiretamente o maquiavelismo ao reprovar o emprego de meios imorais na política, mas é no ensaio La fin du Machiavélisme, presente no livro Principes d`une Politique Humaniste, que Maritain faz uma crítica direta à Maquiavel e a seus seguidores.
O maquiavelismo é ilusão porque repousa no poder do mal, e porque, metafisicamente, o mal, como tal, não tem o poder para causar o ser; praticamente, o mal não tem o poder para causar qualquer realização durável[6].
Mas o que motiva a escolha por um caminho sem bases morais ? A grande força do Maquiavelismo vêm do resultado “positivo”, das vitórias obtidas, dos projetos concluídos pelos meios ilícitos nas manifestações políticas da humanidade.
2. A ANÁLISE SOBRE O PRAGMATISMO MAQUIAVELIANO.
O filósofo francês, ao debruçar sua análise sobre a força do Maquiavelismo e seu divórcio com a moralidade tradicional, responde à essa questão por dois modos. Para ele, é possível respeitar e justiça, andar licitamente, e ser inteligente, capaz de articular ideias, e ao mesmo tempo ser forte. Isso prova a ineficácia do Maquiavelismo, pois o mal é apenas, o poder da corrupção, isto é, a dissipação da substância e da energia do ser e do Bem. Tal poder é destrutivo por si mesmo, pois destruindo aquele bem que é o seu próprio objeto.. Assim, a dialética interior das vitórias do mal as condena a serem efêmeras, isto é, vazias[7]. O mal não é substância propriamente, não é algo, mas sim uma privação de um bem. Maritain não vê futuro em uma política que se utiliza de meios moralmente maus na política para se chegar a uma finalidade querida. Para o filósofo francês, mesmo que não haja uma política justa, mesmo em um futuro distante, a realidade política frutificará e amadurecerá. O maquiavelismo, segundo Maritain, trabalha através de sua própria causalidade para a ruína e a falência, como o veneno na seiva trabalha pela enfermidade e pela morte da árvore[8].
Seguindo a análise sobre o maquiavelismo, o filósofo francês destaca a ilusão que caracteriza este pensamento, o que ele chama de ilusão do êxito imediato[9]. Segundo ele, a duração de vida de um governante delimita e limita o espaço de um tempo exigido por aquilo que ele chama de “êxito imediato”. O significado desta expressão não abrange o sucesso de um estado, nação, mas sim o êxito de um homem propriamente, aquele que utiliza dos meios propostos por Maquiavel, de acordo com a necessidade de um estado ou às necessidades de uma nação. Quanto maior for a força empregada do mal sobre determinado período histórico, os progressos de tal ato serão tanto mais fracos, pois não se sustentam, tendo que sempre utilizar de mais recursos maus para se manter, até uma hora que não há mais como se sustentar e assim acaba ruindo. Quantos mais perfeitas e opressoras forem as armas utilizadas para obter controle sobre os povos, as massas, peculiares aos Estados totalitários espalhados pelo mundo, tanto mais difícil será a tentativa de mudar ou de vencer, de fora para dentro, aquilo que Marritain chama de “esses gigantescos autômatos maquiavélicos”[10].
É evidente que, se a sorte tivesse dado a Roma, como terceiro rei, um homem que não tivesse, com a força das armas, à altura da sua reputação, aquela cidade não teria podido jamais realizar qualquer um de seus grandes feitos. […] Esteve sempre exposta ao perigo de desaparecer devido a um príncipe fraco ou corrompido pelos vícios[11].
Os gigantescos autômatos maquiavélicos não são possuidores de uma onipotência. Sua fraqueza está na violência, no mal que eles fazem. Esse mal não perdura, não é permanente, fazendo desta um processo de autodestruição desses meios políticos. Qualquer atividade que tenha em si algo intrinsecamente a moral, neste caso a política, a condição base para a boa realização desta atividade é que ela seja justa, o que é oposto ao pensamento maquiavélico. Diferente de Maquiavel, o humanista francês, percebe que justiça e a virtude são conceitos perpassam durante toda a vida do homem, sendo algo intrinsecamente do indivíduo.
A crítica de Jacques Maritain à Maquiavel aborda o ainda o problema desenvolvido durante a obra do florentino, que seria a justificação dos meios para obter um fim desejado. Para Maritain, no campo filosófico a solução é óbvia e clara. Na prática, exige do homem uma espécie de superação , heroísmo, pois o sucesso e o emprego dos meios ilícitos levam o indivíduo a tentação de chegar aquilo que se deseja de qualquer maneira. O homem que se vê diante desta situação é confrontado consigo mesmo, pois o mau se aparenta num bem. O homem que não sede à essa tentação age não somente visando algo temporal, mas sim algo além.
3. CRÍTICA ÀS AÇÕES VIRTUOSAS DESENVOLVIDAS, AO PRÍNCIPE, EM MAQUIAVEL.
A ação, segundo Maritain, principal e essencial do corpo político ou da sociedade como um todo não é o de manter os bens materiais dos indivíduos, de assegurar que seus bens materiais, seu bem estar e sua ganância de enriquecer mais e mais sejam mantidos. Todavia, é o de melhores condições da própria vida humana, de alcançar o bem comum de todos, de tal maneira que cada indivíduo, não somente uma classe específica, sejam agraciados por tal ação, que é garantida pela segurança dos direitos de cada homem em sua totalidade, e que é garantida simultaneamente pela segurança econômica do trabalho e da propriedade, pelos direitos políticos, pelas virtudes cívicas e pelo cultivo do espírito. Isso significa que a tarefa política é essencialmente uma tarefa de civilização e de cultura, que dá sustento ao homem que conquista uma autêntica liberdade ou autonomia.
Sobre os meios, Maritain questiona se nós não sabemos a razão pela qual um princípio primário indiscutível, que são os meios, que devem sempre estar direcionados ao fim, aos caminhos que direcionam ao fim, e que tem por base servir para um direcionado bom, direcionamento esse que guia a liberdade, podem ser e modo algum aplicados como algo que sendo deturpado pode alcançar um fim intrinsecamente bom, o que para ele é uma insensatez e um despautério. Na prática, os homens não deixam de se utilizar dos meios maquiavélicos, especialmente no que tange a prática política, pois por sentimentos de vaidade, poder, ganância, se deixam levar, ridicularizando o que na verdade os meios são: caminho para se chegar ao Bem. Mas para Maritain, ao contrário de Maquiavel , devemos nos defrontar com a problemática da racionalização da vida política. É muito difícil, para Maritain, que o homem submeta a sua própria vida, sua liberdade, apenas à racionalização das coisas. No que se refere à organização racional da vida coletiva e política, Maritain, diz que nós ainda vivemos uma pré-história, pois a racionalização da vida política esvazia o homem de suas potências, retira sua animalidade. O mais fácil, mas que termina mal é o meio técnico ou “artístico”[12] e o segundo modo, é mais exigente e também o mais construtivo e progressista, é o meio moral. A racionalização técnica, por meios externos aos homem, versus a racionalização moral, por meios que são o próprio homem, sua liberdade e virtude. Eis o drama que se depara à história humana[13].
Segundo o humanista francês, o autor Florentino, conseguiu instrumentalizar um sistema racional, modo pelo qual os homens mais frequentemente se comportam de fato, no meio político, submetendo esse comportamento a uma simples forma artística e a regras de arte, transformando o conceito de boa política em sinônimo de política amoral, mas bem sucedida. A arte de conquistar (prudência), de conservar o poder (virtù) por todos os meios (ética laica) – mesmo por bons meios, quando a oportunidade se oferece o que para Maritain, não é frequente – com a única condição de que sirvam para alcançar êxito.
Os homens que desejam implementar uma ação devem primeiramente aprimorar-se em suas funções e adquirir toda a habilidade e astúcia, para que, quando a oportunidade apresentar-se, estejam preparados para alcançar seu objetivo maior[14].
Portanto, a grande força do Maquiavelismo vem do resultado “positivo”, das vitórias obtidas, dos projetos concluídos pelos meios ilícitos nas manifestações políticas da humanidade. Na prática, os homens não deixam de se utilizar dos meios maquiavélicos, especialmente no que tange a prática política, pois por sentimentos de vaidade, poder, ganância, se deixa levar, ridicularizando o que na verdade são os meios: caminho para se chegar ao Bem. Mas para Maritain, ao contrário de Maquiavel, devemos nos defrontar com a problemática da racionalização da vida política, tema que iniciamos o último ponto. É muito difícil, para Maritain, que o homem submeta a sua própria vida, sua liberdade, apenas à racionalização das coisas.
4. CONCLUSÃO
A natureza do homem é relação com o infinito, o homem autenticamente religioso é a aceitação do infinito como significado de si. É muito maior e muito mais verdadeiro amar o infinito, isto é, abraçar a realidade e o ser, ao invés de afirmar-se a si mesmo diante de qualquer realidade. Porque, na verdade, o homem somente afirma a verdadeiramente a si mesmo quando aceita o real; tanto é verdade que o homem começa a afirmar a si mesmo aceitando existir, isto é, aceitando uma realidade que não lhe foi dada por ele mesmo. Eis porque o critério fundamental para se enfrentar as coisas é o critério objetivo com o qual a natureza lança o homem o comparação universal, dotando-o daquele núcleo de exigências originais, somente na identidade da consciência última, na exigência da bondade, da justiça, da verdade, da felicidade, constitui o rosto último, a energia profunda com a qual os homens de todos os tempos e de todas as raças abordam tudo, a ponto de poderem viver entre si um comércio de ideias e não apenas de coisas, e de poderem, assim, transmitir um ao outro riquezas à distancia dos séculos.
Segundo Jacques Maritain, Maquiavel ensinou que a imoralidade não é apenas permitida na política, mas é a própria lei da política[15]. Maquiavel tem por base do seu conhecimento antropológico uma visão pessimista da natureza humana, razão pelo qual ele diz que “os homens são ingratos, volúveis, simuladores e dissimuladores”[16], e que “o príncipe que queira manter o Estado muitas vezes é obrigado a não ser bom”[17], e por isso o Estado deve partir do princípio de que todos os homens são maus, estando dispostos a agir com perversidade de acordo com a ocasião[18]. Isso não quer dizer que Maquiavel anule totalmente que o homem em sua essência seja bom, mas a sua visão imanente e material do homem faz com que a referência Divina seja perdida, seja ocultada a imagem de Deus. A figura do príncipe é enxergada como um “animal de rapina”, um animal que calcula seus atos e age segundo a forma que lhe convém em determinada situação, sendo motivado pelo seu egoísmo, sua ira, sua ganância. Para Maquiavel, o homem confia na capacidade de agir com autonomia, por isso ele busca explicações racionais baseadas nas experiências e observações[19]. A autonomia das ações é por qual se desenvolve o projeto de construção do novo sentido de virtude, em Maquiavel. Nota-se que a perda da referência transcendente faz com que o homem seja reduzido apenas ao ato, à circunstância.
Do ponto de vista metafísico, o mal não pode prevalecer sobre o bem, pois o não-ser não gera o ser, é algo estéril. A ilusão do maquiavelismo é a obtenção do sucesso político imediato quando se põe em prática todos os conselhos práticos dados no Príncipe. Segundo Maritain, a prática da justiça política e a retidão não podem ser sobrepostas para alcançar ou sustentar o poder, mas, antes, constituem o princípio interno da vida em sociedade. O maquiavelismo repousa no poder do mal, trabalha para a morte, para o não-ser. O filósofo francês ainda exorta aos homens que pela justiça tudo se deve sofrer, compreendendo o papel de juiz que cabe ao Estado na ausência de instituição internacional investida de jurisdição universal, para sustentar uma guerra justa contra o maquiavelismo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Maquiavel: A Lógica da Força. 1ª Edição, São Paulo, Editora Moderna, 1993.
MARITAIN, Jacques. Humanismo Integral; Tradução de Afrânio Coutinho. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1942.
________. O Homem e o Estado, tradução de Alceu Amoroso Lima, 1ª. Edição, Rio de Janeiro, Editora Agir, 1952.
________. Principes d`une Politique Humaniste; Nova Iorque, Éditions de La Maison Française, 1944.
MAQUIAVEL, Nicolau. A Arte da Guerra. Tradução de Sally Tilelli. Editora Évora, São Paulo, 2011.
_________________. Comentários sobre a Primeira Década de Tito Lívio. Tradução de Sérgio Bath. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 3ª Edição, 1994.
____________________. O Príncipe. Tradução de Fúlvio Lubisco. São Paulo, Editora Jardim dos Livros, 2007.
[1] Bacharel em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), e Mestrando em Políticas Sociais pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
[2] Cf. MARITAIN, Jacques, O Homem e o Estado, tradução de Alceu Amoroso Lima, 1ª. Edição, Rio de Janeiro, Editora Agir, 1952, pp. 70-80
[3]Cf. MARITAIN, Jacques, O Homem e o Estado, ibidem, Ibid. p.70
[4] MARITAIN, Jacques. Humanismo Integral; Tradução de Afrânio Coutinho. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1942, p. 236-243
[5] Idem. O Homem e o Estado, Tradução de Alceu Amoroso Lima. Rio de Janeiro, Agir Editora, 1966, p. 59-78
[6] Idem. Principes d`une Politique Humaniste; Nova Iorque, Éditions de La Maison Française, 1944. p. 228
[7] Cf. MARITAIN, Jacques, O Homem e o Estado, ibidem, Ibid. p.71
[8] Cf. MARITAIN, Jacques, O Homem e o Estado, ibidem, Ibid. p.71
[9]Esta expressão é sublinhada por Jaques Marritain em sua obra. É importante no entendimento da crítica do autor deste capítulo a Maquiavel.
[10] Cf. MARITAIN, Jacques, O Homem e o Estado, ibidem, Ibid. p.71
[11] MAQUIAVEL, Nicolau. Comentários sobre a Primeira Década de Tito Lívio. Tradução de Sérgio Bath. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 3ª Edição, 1994. P. 80
[12] No sentido Aristotélico, ele diz que esta expressão “artístico” está pertencendo ao domínio e à virtude intelectual da Arte, como distinta a moralidade.
[13] Cf. MARITAIN, Jacques, O Homem e o Estado, ibidem, Ibid. p.69.
[14] MAQUIAVEL, Nicolau. A Arte da Guerra. Tradução de Sally Tilelli. Editora Évora, São Paulo, 2011. p. 10
[15] MARITAIN, Jacques, Principles d`une Politique Humaniste, Nova Iorque, Éditions de La Maison Française, 1944, p. 176
[16] MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Tradução de Fúlvio Lubisco. São Paulo, Editora Jardim dos Livros, 2007. P.143
[17] MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Ibidem, Ibid. P. 166
[18] MAQUIAVEL, Nicolau. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. Tradução de Sérgio Bath. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 3ª Edição, 1994 P. 29
[19] C.f. ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Maquiavel: A Lógica da Força. 1ª Edição, São Paulo, Editora Moderna, 1993. P. 47