Bento XVI e Santo Tomás
Sobre vícios e virtudes
O personagem do momento no Rio de Janeiro é o Tenente-Coronel Roberto Nascimento, mais conhecido por Capitão Nascimento, comandante do Batalhão de Operações Especiais (BOPE) da Polícia Militar do estado e símbolo máximo do que a sociedade carioca espera dos seus servidores: justiça. O personagem, que na continuação Tropa de Elite 2 alcança a patente de Tenente-Coronel, resvala não poucas vezes em crises em que a justiça dá lugar à vingança, levantando a questão da natureza e do limite entre estes dois conceitos, tornando assim suas escolhas e práticas policiais bastante vulneráveis a críticas. Apesar disso, entendo que o personagem é o ícone do ser humano, uma síntese do que somos cada um de nós: indivíduos partidos, onde o bem e o mal habitam e duelam cotidianamente. Talvez por isso o Capitão seja tão mal entendido por uns; talvez também seja esse o segredo do seu sucesso, o caráter realístico, próximo de cada um de nós. Esse realismo alavancou as bilheterias e transformou a polícia (não em geral, mas o BOPE) em um fenômeno pop. Os críticos, no entanto, parecem esperar do personagem ou uma bondade angélica, incapaz de ser encontrada encarnada em qualquer indivíduo; ou uma maldade absoluta, fácil de ser criticada e denunciada. Infelizmente para os simplistas, o personagem não é assim. Afinal, o homem mesmo não é assim.

Outro exemplo desta esperança romântica da bondade (ou maldade) absoluta é a querela provocada pelas grandes mídias e por alguns formadores de opinião na mídia digital entre Bento XVI e o Magistério Ordinário e/ou Extraordinário, acerca de aspectos da sexualidade humana. Em resumo, em um ato que pode ser assemelhado a um “Fogo Amigo“, o Observatório Romano, jornal oficial do Vaticano, fez publicar parte do recente livro escrito por Bento XVI e Peter Seewald, em que o Papa afirma que o uso de preservativos por pessoas que praticam o sexo profissional pode ser um início da humanização da pessoa (leia o trecho do livro aqui). A declaração, divulgada fora de contexto e apressadamente assim, incentivou, de um lado, a precipitação na afirmação de que a Igreja havia mudado sua posição quanto aos preservativos; de outro, aumentou a indignação de alguns cristãos pelo fato de o Papa deixar divulgar opiniões que poderiam confundir o povo de Deus. Houve até quem aconselhasse ao Papa pronunciar-se tão somente Ex Cathedra. No meu modo de ver, a questão debatida se encontra sobre dois pontos: 1. se a virtude da graça supõe uma virtude da natureza; 2. se no homem a virtude natural pode caminhar junto com o vício.
Antes de tudo, como o status quaestionis acima aponta, isto não é uma defesa do Papa Bento XVI, por vários motivos, dos quais destacarei apenas dois. O mais evidente, é claro, é a minha incapacidade de defendê-lo. O Papa Bento tem dado provas de que não é assim tão fácil de contestar, o que torna ainda mais difícil sair em sua defesa. Antes disto, porém, existe o fato de ele não precisar ser defendido, pois nada do que disse obriga o fiel cristão, além do que – e esse é objeto deste texto – nada foi dito de absurdo. Por esta razão, o objetivo desta reflexão é tratar das quetões anunciadas acima. Mas vamos lá:
1. Se a virtude da graça supõe uma virtude da natureza
O elemento mais complexo do texto divulgado é aquele em que Bento XVI afirma que o uso de preservativo na prostituição pode ser sim um sintoma inicial da humanização da sexualidade. Ora, é patente e me dou o direito de não precisar provar que o vício não é ainda virtude e que, portanto, o texto do Papa não tem o objetivo de dizer que, pecando, o prostituto está se humanizando. Se assim for, a frase do Papa deveria ser lida no seguinte sentido: a virtude da prudência (virtude adquirida, não o dom do Espírito Santo), que se deixa ver quando o indivíduo que se prostitui quer preservar o parceiro ou a si mesmo de uma doença que pode levá-lo a morte ou a outros problemas, é já um sinal de bem que não é pouco importante na vida desse indivíduo. Tal preocupação é sinal de certa virtude, mesmo que imperfeita, e é melhor uma virtude imperfeita que não existir virtude alguma. Se esta leitura estiver correta, a Graça (que ainda não está no que se prostitui) aguarda que virtudes humanas apenas se apresentem para, em um segundo momento, fazer sua parte a seu tempo. Portanto, parece que o sentido do texto do Papa é sustentar que, antes da vida da Graça, o homem precisa antecipar-se e tornar-se o mais humano possível. Não que a Graça necessite da ação humana para agir ou santificá-lo. Antes, é pelo chamado da Graça que o homem responde com sua boa vontade e boas intenções. No entanto, a preponderância absoluta da Graça na conversão do homem não exime o homem de uma preparação requerida para a recepção da Graça de Deus (Sth I-IIae, q. 112, a. 2, sc.). No artigo citado, Santo Tomás pergunta se é necessáraia uma preparação ou disposição para receber a Graça por parte do homem, ao que responde que sim, citando a Sagrada Escritura:
“Prepara-te, Israel, para o encontro com teu Deus” e o livro dos Reis diz: “Preparai vossos corações para o Senhor”.
Ora, como a Graça antecede o homem e o supõe? Como é possível que o homem seja convocado para converter-se pela Graça, mas suas escolhas e decisões preparem para receber a mesma Graça? Para sair dessa aporia Santo Tomás faz uma importante distinção:
Foi dito acima que há duas espécies de Graça: o dom habitual de Deus, e o auxílio de Deus que move a alma para o bem. Se se considera o dom habitual, ele exige em nós uma preparação, porque não pode haver nenhuma forma senão na matéria disposta (Sth I-IIae, q. 112, a. 2, co.).
Ora, o Aquinate afirma que o dom habitual, que é Graça também, é antecipado pela conveniente preparação do homem para sua recepção. No entanto, adiante o Angélico dirá que há uma Graça que prescinde absolutamente de toda ação humana. Com estes argumento é necessário concluir: sim, há um tipo de Graça que pode ser preparada pela natureza, do mesmo modo que uma forma necessita de uma matéria adequadamente organizada para recebê-la. Não há matéria sem forma e, no mundo natural, não há forma sem matéria. Assim, o axioma que afirma que a Graça supõe a natureza está confirmado, desde que se distinga a Graça, dom habitual de Deus, da Graça, auxílio de Deus. Mas um outro problema ocorre: ainda que a Graça de Deus aguarde o esforço humano para, no momento em que Ela ache conveniente, intervenha e modifique a vida do indivíduo, essas virtudes preliminares podem conviver com vícios (até muito piores que a virtude em questão)? Vamos avaliar.
2. Se no homem a virtude natural pode caminhar junto com o vício
No texto do Papa Bento XVI, o que causa espanto em alguns é a afirmação de que em um pecador público, como os que se prostituem, haveria algum tipo de bem, algum tipo de virtude. Como pode ser? Deve ser dito, antes de tudo, que ao vício só repugna a virtude contrária. O luxurioso, justamente por causa de sua luxúria, não pode ter a virtude da castidade, visto tratarem do mesmo objeto: a ordem ou desordem do apetite sexual. Não é possível ser ordenado e desordenado, sob o mesmo aspecto e sob o mesmo ponto de vista. No entanto, outras virtudes não repugnam ao luxurioso. Por exemplo, a virtude da urbanidade, que é sim uma virtude importante, pode ser – eu diria até que é muitas vezes – útil aos que vendem seus corpos. E virtudes mais espirituais como a honestidade podem conviver com o vício da luxúria, sem problema. E a nossa experiência cotidiana atesta esses fatos. Mas o que Santo Tomás tem a nos dizer sobre o assunto:
“Se um só ato virtuoso não faz a virtude, como se viu acima, um só pecado não a desfaz. Portanto, virtude e pecado podem existir ao mesmo tempo no mesmo sujeito”. (STh I-IIae, q. 71, a. 4, sc.)
Por não serem absolutos, de sorte que a posse de um negue a existência de outro, virtude e vício podem conviver no indivíduo. Antes, virtude e vício são relativos, a saber: relativos a um objeto específico e não a todos. A virtude da pontualidade é relativa à justiça, e não à temperança; o vício da gula se relaciona por carência com a temperança e não com a justiça. Por este motivo, é possível que um indivíduo possua um vício concomitante com uma virtude. Parece que este é o caso dos que se prostituem: possuem o vício da luxúria, pela qual podem perder a Deus eternamente, mas podem adquirir a virtude da prudência, ao utilizar um artifício para proteção. Obviamente, seu ato continuará sendo pecaminoso, mas haverá algo mais além do pecado: uma virtude que não estava lá. É o que Santo Tomás continua a nos dizer:
“Por conseguinte, se o pecado mortal não pode existir ao mesmo tempo com as virtudes infusas, ele pode, no entanto, existir ao mesmo tempo com as virtudes adquiridas. E o pecado venial pode existir ao mesmo tempo com as virtudes infusas e adquiridas”. (STh I-IIae, q. 71, a. 4, co).
Veja que Santo Tomás está afirmando que as virtudes infusas (fé, esperança e caridade) não existem na alma em pecado. Mas as virtudes adquiridas (paciência, ordem, urbanidade, gentileza, veracidade…) podem, sim, conviver até com pecados mortais. Ora, essas virtudes são virtudes, isto é, são bens espirituais alcançados e são boas. Portanto, em alguém que está em pecado grave, é melhor muitas virtudes adquiridas sem a Graça Santificante que os mesmos pecados graves sem qualquer virtude adquirida. Aplicando esses conteúdo ao caso concreto dos que se prostituem, não se trata então de salvar-se pecando ou de ser indiferente a prostituição. É a virtude da prudência que pode já ser um início da consciência ética a reaparecer nestes indivíduos.
O Capitão Nascimento é uma síntese do homem, do mesmo modo que o Rio é do Brasil. Bem e mal em nós se misturam; beleza e fealdade no Rio se encontram, não raro, na mesma paisagem. O que os cristãos não podem esquecer é que, no interior de cada um, habita uma fera, e que cada passo e esforço próprio para domar a fera são recompensados incontinente e abundantemente pela Graça. E tais vitórias humanas não se perdem quando a fera, vez em quando, se solta. Além do que, deixar todo o trabalho para a Graça de Deus seria, no mínimo, arriscado, como por séculos nos tem avisado a parábola dos talentos (Mt 25, 14-20). Que diante do Senhor não retribuamos seu Sangue na Cruz apenas com o que Ele nos deu (virtudes infusas), mas que também Lhe devolvamos nosso sangue e suor (virtudes adquiridas).